“Não gosto da decisão do Supremo Tribunal sobre o aborto. Acho que foi longe demais”, comentou no ano seguinte, argumentando que as mulheres “não tinham o direito exclusivo de decidir sobre o que acontecia nos seus corpos”. Nesta altura, Joe Biden admitia ser “realmente bastante conservador na maioria” dos assuntos.
Manteve a posição durante uma década e até chegou a subscrever uma iniciativa, em 1982, que visava permitir que os Estados individualmente anulassem a decisão conhecida por Roe v Wade e tomassem as suas próprias decisões. Biden foi o único democrata a apoiar a iniciativa e, segundo declarou ao The New York Times, foi “o voto mais difícil que fiz enquanto senador dos Estados Unidos”.
A emenda ao Federalismo da Vida Humana defendia que “o direito ao aborto não é garantido por esta Constituição” e foi considerada pelo mais grupo defensor da liberdade de escolha, agora designado NARAL Pro-Choice America, como “o mais devastador ataque ao direito ao aborto”.
“Sou provavelmente uma vítima ou um produto, como quiser dizer, da minha educação”, disse o futuro presidente, em alusão aos valores católicos que professa, mas admitia ter dúvidas quanto ao “direito de impor” a sua visão.
Em 1983 mudou abertamente de ideias e votou contra a proposta, numa reviravolta que marcou a carreira política de Biden. A iniciativa nunca chegou ao plenário do Senado.
Quando confrontado com esta pirueta duas décadas mais tarde, Joe Biden justificava que um governo “não tinha o direito de dizer a outras pessoas que as mulheres não podem controlar o seu corpo”. Os defensores do direito à escolha admitiam que esta fosse também uma tentativa para Joe Biden criar o seu próprio espaço ideológico ao centro, posicionando-se como “um candidato moderado”.
Ao saber da intenção do Supremo Tribunal, que durante a égide de Donald Trump teve nomeados três juízes conservadores, em anular o histórico acórdão, o agora presidente dos Estados Unidos disse estar “muito preocupado que, passados 50 anos, vamos decidir que uma mulher não tem o direito de escolher”.
Numa sociedade profundamente dividida sobre o tema, Joe Biden apelou aos eleitores para “eleger funcionários pró-escolha [nas eleições intercalares] em novembro. No nível federal, precisaremos de mais senadores pró-escolha e uma maioria pró-escolha na Câmara para adotar uma legislação que codifique o caso Roe v. Wade, que trabalharei para aprovar e sancionar”.
Implicações da revogação
Se o Supremo Tribunal anular o precedente estabelecido em Roe v. Wade, não será apenas direito ao aborto que estará em risco, mas todo o sistema de precedentes que garante as liberdades individuais no país. Por este motivo, os grupos LGBTQ+ receiam que o casamento entre pessoas do mesmo sexo e outros marcos dos direitos civis estejam em causa.
Após a fuga de informação que apontava para a intenção de revogar o acórdão, a ministra das Famílias, Crianças e Desenvolvimento Social do Canadá admitia que os americanos que atravessassem a fronteira poderiam fazer a intervenção abortiva no país. “Se as pessoas vierem cá e precisarem certamente será um serviço que poderemos prestar”, dizia Karina Gould.
Contudo, a declaração da ministra foi mais tarde corrigida e esclarecidos que os americanos que procurarem os serviços de saúde no Canadá teriam de os pagar, se não estiverem cobertos pelos seguros do país.
O Instituto Guttmacher estima que 26 dos 50 estados dos EUA vão provavelmente proibir a interrupção voluntária da gravidez se Roe v Wade for revogado, impedindo o acesso a este procedimento a mulheres de Estados do Sudoeste e Centro-oeste dos Estados Unidos, como Arkansas, Dakota do Norte, Dakota do Sul, Idaho, Kentucky, Louisiana, Mississippi, Missouri, Oklahoma, Tennessee, Texas, Utah e Wyoming.
Enquanto alguns Estados devem banir a prática quase completamente, outros poderão interditá-la após a sexta ou a 15ª semana de gravidez.
A maioria dos estados onde o aborto ainda seria legal situa-se na Costa Oeste (Califórnia, Nevada, Oregon e Washington) ou no Nordeste. O governador da Califórnia, o estado mais populoso, propôs consagrar o direito ao aborto na Constituição do Estado.
O que é Roe v Wade
Em 1973, o Supremo Tribunal decidiu que a Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade da mulher grávida de escolher interromper a gravidez “sem restrições excessivas do governo”.
Este acórdão sobrepõe-se às leis federais e estaduais e lançou o debate sobre até que ponto a interrupção da gravidez dever ser legal, que deve decidir sobre a sua legalidade e que papel têm os valores morais e religiosos no domínio da política.
O caso foi espoletado pela intenção de abortar de Norma McCorvey – conhecida sob o pseudónimo legal de Jane Wade – que em 1969 ficou grávida pela terceira vez. No Estado do Texas o aborto era apenas possível para salvar a vida da mãe.
Os seus advogados começaram por ganhar a ação num tribunal federal do Texas contra o Estado representado pelo procurador Henry Wade, que apelou diretamente para o Supremo Tribunal.